No passado, quando ainda era um povoado, a cidade gaúcha de Cruz Alta era um grande ponto para inúmeros tropeiros que ali pousavam para descansar e também saciar sua sede. Conta-se que as moças locais ofereciam uma água encantada para eles, proveniente do histórico Arroio da Panelinha. Ao beber daquela água, os homens não queriam ir embora. Acabavam ficando de vez. Fixando residência e construindo suas famílias; assim formando a cidade em seus primórdios. Contudo, neste texto vou tratar justamente do oposto de criar raízes. Uma outra lenda cruz-altense. Uma história sobre precisar partir. Ou libertar-se. Libertar-se da sina herdada na lenda do Monstro da Lagoa do Cemitério.
Em conversas com os moradores de Cruz Alta, a fim de conjecturar a aparência desta figura mítica, percebi que, mesmo com linhas interpretativas ou versões informes, ela foi majoritariamente descrita da forma que será narrada mais adiante.
Diz a lenda que, em décadas passadas, havia uma jovem muito bela na cidade, de família rica e influente, que caiu de amores por um rapaz extremamente pobre. Desse amor proibido nasceu uma criança, despertando ira na altíssima família da moça. O que tinham de dinheiro, eles também tinham de crueldade. Tomaram o recém-nascido da própria filha, e o jogaram nas profundezas daquela que ficou popularmente conhecida como Lagoa do Cemitério – drenada por volta dos anos 40, sem motivo aparente.
Para muitos místicos, na plenitude da madrugada os portais para o submundo são abertos, e castigam nosso plano com terríveis manifestações sobrenaturais. Após aquele fatídico dia em que o bebê foi afogado, era justamente por essas horas mortas que os moradores ouviam constantes gritos, lamentos e choros desesperadores ressoando pelo lago. Oriundos daquela alma sofrida e inocente.
As pessoas diziam ver uma estranha criatura perambulando na calada da noite por aquele ambiente tenebroso e tomado por neblina. Com sua grande estatura, tinha um corpo humanoide, todo coberto de lodo, como um clássico e repulsivo “Monstro do Pântano”. Em algumas narrativas, a assombração seria a própria alma penada da criança, transfigurada naquele ser, que clamava tamanha lamúria pelos pais e pela benção do batismo. Já em outras, afirma-se que o monstro lamacento era visto carregando o bebê no colo, transbordando melancolia.
O horror que predominava por aquelas paragens era tanto, que um padre foi chamado para solucionar o problema. Ele batizou a pobre alma da criança, finalmente libertando-a de encontro à luz. Com seu ato sagrado concluído, pela primeira vez não se ouvia mais nenhuma lamentação nefasta; porém, mesmo ajudando, o padre foi oprimido. Perturbados por tais acontecimentos obscuros, a poderosa família e alguns moradores das redondezas o acusaram de sacrilégio. Ingratos, julgaram como bruxaria a sua forma e facilidade de lidar com a situação. Ele acabou preso a sete chaves pelo delegado da cidade, em um hostil calabouço, onde já podia prever um inevitável encontro com a fogueira.
Certo tempo depois, o próprio delegado foi tomado pela curiosidade. Deixou o padre muito bem vigiado pelos guardas, e foi explorar o local ao anoitecer. Queria ver com os próprios olhos se ainda havia algum sinal do monstro. De repente, na fria caminhada às margens da lagoa, deixou de escutar apenas o som de alguns insetos barulhentos e de seus cautelosos passos pela terra úmida, ouvindo novamente os mesmos gritos e choros apavorantes de outrora. Um som que entoava cada vez mais alto e mais próximo, agora, bradando pela liberdade do padre. Ele então retornou correndo desesperadamente ao calabouço, mas, chegando na cela, o padre já não estava mais lá. Tinha escapado misteriosamente. Haviam apenas insólitos vestígios de lama no local.
Acredita-se que o próprio monstro tenha libertado o infausto vigário.
Daquele dia em diante, tanto o padre, quanto o monstro, tiveram sua paz e não foram mais avistados. Entretanto, antes de deixar Cruz Alta, aquele enigmático homem lançou uma praga. Sentenciou que todo filho daquela morada, para prosperar e ficar famoso, teria que deixar Cruz Alta e viver por outras terras, só assim libertando-se da maldição.
Então, ao final, ficam duas crendices e uma questão: permanecer em Cruz Alta, como induziam os encantos do Arroio da Panelinha, ou partir, como determinado na lenda do Monstro da Lagoa do Cemitério? Façam suas apostas!
Caio Sales é ilustrador e escritor, autor da série O Imaginário do Mundo. Pós-Graduado em Marketing pela PUC-Campinas, também é criador do blog My Creature Now, sobre criaturas mitológicas e lendas urbanas. @caiosales_art | Acesse: www.mycreaturenow.com