Para trazer um embasamento bastante relevante, tive o grande prazer de conversar com Andriolli Costa, jornalista, podcaster e pesquisador especializado em folclore e cultura brasileira. Doutor em Comunicação e Informação pela UFRGS e mestre em Jornalismo pela UFSC, é professor adjunto do Departamento de Jornalismo da UERJ e preside a Rede de Estudos e Pesquisas em Folkcomunicação, além de atuar em outros núcleos e redes acadêmicas. Ele trouxe excelentes camadas a todo o simbolismo e aos reflexos culturais por trás dessa criatura. Assim dizendo:
“Primeiramente é importante partilhar de um entendimento sobre o que é o mito do lobisomem para então entender os seus lastros simbólicos. É comum que se pense que o lobisomem, pela própria etimologia da palavra, seja compreendido como apenas a narrativa da transformação de homem em lobo ou vice-versa. No entanto, ao observarmos as histórias de lobisomens e seus correlatos no Brasil e no mundo à procura do seu elemento recorrente, encontramos entre os seus mitemas – que, na antropologia, representa a menor unidade de narrativa da qual os mitos são formados – a transformação em animal motivada por uma maldição.
A maldição, evidentemente, pode ser considerada metáfora para o rompimento de um interdito. Da mais famosa destas narrativas, podemos tirar o exemplo inicial: quando Zeus transforma Licãao, o rei da Arcádia, e toda a sua prole em lobos é pelo castigo de comer e servir carne humana aos deuses. Condenados ao corpo bestial, de onde surge a palavra ‘licantropia’, encontram na devoração da humanidade que lhes foi tirada o caminho para preencher suas ausências.
O interdito, no entanto, pode estar ligado a outras violações mais ou menos graves sob o nosso olhar contemporâneo. Pode envolver desde ações tétricas propositalmente praticadas, como na mitologia eslava em que se deve vestir cinturões feitos de pele humana para se tornar um Volkolak, até as acidentais, como tocar nas ferramentas de uma bruxa. No Brasil, folcloristas registram outras formas de interditos que transformam uma pessoa em lobisomem: a leitura do livro de São Cipriano é uma delas; ou ainda, comungar a hóstia após passar dez anos sem se confessar.
Podemos pensar ainda no que significa uma das formas mais clássicas de amaldiçoamento em lobisomem na cultura brasileira: o nascimento do sétimo filho homem, não batizado, após os seis outros filhos igualmente do gênero masculino. O filho de número sete, vinculado à perfeição e ao infinito, simbolicamente é maculado quando – em uma cultura fundamentalmente católica – não segue o rito do batismo, levando à transformação.
A assunção à forma fera não é despropositada. No Brasil, vale lembrar, não possuímos lobos do gênero canis. O lobo-guará, frequentemente utilizado por artistas para representar ilustrações de licantropos brasileiros, pertence a um gênero próprio – o Chrysocyon – do qual é o único espécime. Nada mais coerente do que as transformações dos nossos sétimos filhos, portanto, ser vinculada ao cachorro e a outras formas amalgamadas. Normalmente, descrevem-no como uma mescla de cão e outros mamíferos de quintal: porco, touro, cavalo, jumento, carneiro, e assim por diante.
A escolha é coerente: o lobisomem simboliza o nosso medo intrínseco de que aquele que está próximo a nós se revele violento, monstruoso, animalesco. A metáfora já funcionava no mito europeu, com o lobo em pele não de cordeiro, mas de gente; só que ganha força ainda maior no Brasil, com a incorporação do cão e dos bichos da criação. Nada mais próximo, amigo, cotidiano e, justamente por isso, mais representativo do medo desta natureza oculta.”
Conforme já vimos no texto sobre a assombração do Gato Negro do Largo da Matriz (edição de 20/09/25; também disponível no site: bit.ly/colunamitos), em Atibaia, no que se refere às assimilações do mito do lobisomem no Brasil, narra-se também que a Quaresma é um período em que as fronteiras entre o sagrado e o profano se tornam frágeis, abrindo espaço para o insólito. É nesse período que seres amaldiçoados, como a mula-sem-cabeça e, justamente, a fera canídea, se tornam mais poderosos, como se fossem alimentados por forças do além. Assim, tal licantropo – que comumente pode ser visto como um tanto inofensivo, atacando animais do sítio ou recém-nascidos não batizados – durante a Quaresma se transforma diariamente, permanecendo à vontade em sua forma bestial e entregue a uma ferocidade desmedida, com mais sede de sangue.
O próprio Andriolli Costa é autor do interessante artigo “Por que a Quaresma é o Momento Mais Sombrio do Folclore Brasileiro?” (2020), o que também me motivou a aprofundar esse temor do oculto e a peculiaridade do mito em nossa conversa, que seguiu por estas palavras em sua fala:
“Diante desse temor, a Quaresma se torna mais um interdito. Afinal, vaguear pelas horas mortas, especialmente durante a semana santa, é arriscar-se a encontrar as visagens que habitam nosso imaginário popular – sendo o lobisomem a mais frequente. E, sabemos, uma mordida dele pode gerar a partilha de sua sina para outro penitente.
Mais do que vigilância, Quaresma traz o simbólico do resguardo. Durante os quarenta dias que antecedem a Páscoa, representativos dos mesmos quarenta que Jesus teria vagado pelo deserto sofrendo as tentações do diabo, o povo partilha do sofrimento para mitigar o fardo divino. Era um período de contrição: não se devia rir, cantar ou dançar para não parecer que se divertia durante o sofrimento de Cristo. Mas também não se deveria cortar cabelo ou barba, varrer a casa, ou praticar outras atividades e cuidados.
Era tempo de silêncio, de reclusão e, claro, de jejum. Assim, mesmo entre os que não se consideram católicos praticantes, não é infrequente a abstinência de algo em troca de graças ao universo: sexo, bebida, comida, comportamentos. O lobisomem, que corre pelas estradas nas noites de Quaresma, é símbolo de nossa natureza revolta e incontida: rendida aos desejos, à fome do mundo e à devoração do outro. Não respeita interditos nem limites – inclusive os que separam homem e fera. Quem o encontra, espojando-se nas encruzas, arrisca ser contaminado pela sua impostura feral.”
Como podemos notar, a observação de nosso imaginário revela não apenas símbolos, mas também instiga o pensamento crítico e provoca reflexões sociais e culturais. Sendo assim, considero fundamental encontrar formas de transmitir essas nuances aos mais jovens, sem recorrer a visões genéricas ou superficiais, para que ao menos cresçam como pessoas propensas a respeitar a diversidade sociocultural e as crenças do próximo, algo de suma importância. Dessa forma, também podem surgir futuros pesquisadores ou fazedores de cultura comprometidos com a preservação de um patrimônio imaterial valioso: os saberes dos povos, sejam eles de matriz africana, indígena, popular caipira ou de outras tradições.
Neste ponto, o diálogo se amplia para além do lobisomem, que carrega até certo privilégio em razão de sua origem europeia e de sua universalidade. Outras culturas, em muitos casos marginalizadas, também merecem essa atenção para não serem apagadas.
Na próxima edição, a seção B da Parte 5 trará a rica visão folclórica de Hilton Mercadante, profissional com décadas de atuação nas artes gráficas e na educação artística, além de um causo de Lobisomem ocorrido em Bragança Paulista há algumas décadas.
Caio Ambrósio Sales é pesquisador, ilustrador e escritor, com atuação nos meios cultural e publicitário. É pós-graduado em Marketing e Inovação pela PUC-Campinas e também em Sociologia, História e Filosofia pela PUC-RS. Atualmente, é pós-graduando em Gestão Cultural e Indústria Criativa na PUC-Rio. Tem também qualificação internacional em Marketing e Comunicação pela Academies Australasia, em Sydney, na Austrália. É membro da Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST) e da Associação de Escritores de Bragança Paulista (ASES). @caiosales_art