No norte do Piauí está localizada a cidade de Luís Correia, um dos quatro municípios litorâneos do estado, detentor de grande relação com a pesca artesanal. Dentre os seus belos cenários, é na Praia do Coqueiro que uma mistura de respeito, terror e ensinamento se mantém através da oralidade na comunidade marítima onde uma criatura descomunal das águas faria a maior parte de suas incursões. A Arraia Grande, ou Arraia Gigante, vive nas profundezas do oceano, sendo capaz de fazer barcos e jangadas encalharem sobre suas imensas abas quando a criatura emerge à superfície, sendo muitas vezes confundida com bancos de areia.
Os pescadores mais antigos registram, em vozes trêmulas, que num dado momento da partida à labuta, sempre em alto-mar, suas embarcações simplesmente param, deixando-os tocados pela brisa e pelo silêncio confinante do meio do oceano. Quando compreendem que não empacaram em terra firme, mas, sim, no dorso de uma criatura colossal, a ficha cai e o desespero toma conta, disparando o coração. Apenas a concentração, com uma poderosa reza para Yemanjá, a rainha das águas, é capaz de fazer a Arraia Grande mergulhar novamente para os recantos abissais e deixá-los em paz.
No entanto, há também quem se arrisque.
Conta-se sobre um barqueiro de valentia exacerbada – beirando a loucura –, que ao ter seu barco retido pelo corpanzil do monstro marinho, acreditando que a criatura estava morta, desceu sobre suas costas, empunhando a peixeira, e ali decidiu preparar um churrasco. Começou então a desferir golpes e cortar a carne. Ao acender o fogo, no exato instante em que as chamas lamberam aquele couro rugoso e molhado, a Arraia Grande despertou e sacudiu-se enfurecida, mergulhando bruscamente em disparada e levando o homem para as profundezas do mar. Ali fora encerrada a audácia do pescador, então sem vida.
A lenda da Arraia Grande me parece bastante esclarecida no contexto regional e na sua relação com o ambiente de atividade pesqueira em Luís Correia. Entretanto, ao aprofundar a pesquisa, também considerei relevante conhecer e trazer à tona o aspecto religioso mencionado. Portanto, saindo completamente da alçada lendária e da figura monstruosa da narrativa, considerando agora o campo religioso, especialmente para a força de Yemanjá sobre as águas, busquei uma compreensão mais profunda e respeitosa por meio de uma voz legítima. Tive, então, a oportunidade de conversar com Severino Ferreira da Silva, conhecido como Pai Bil de Xangô, patriarca da Nação Nagô Mirerê, presidente da Associação Bragantina de Umbanda e Candomblé (ABUC), Doutor Honoris Causa pela Universidade dos Capelães do Brasil, conselheiro vitalício da Faculdade de Teologia Umbandista (FTU) e titular da cadeira de matriz africana no Conselho Municipal de Cultura de Bragança Paulista, que recebeu o convite com muita gentileza e me brindou com sua sabedoria, através das seguintes palavras:
“Os orixás, todos eles, em todos os aspectos, inclusive os da natureza, transcendem o mundo espiritual e trazem essa visão para o mundo material. É assim que os adoramos. Por exemplo, Yemanjá, a Grande Mãe, no fator biológico humano, comanda o coração e a garganta; na natureza, ela é o equilíbrio do mar e das águas. ‘Yé’ quer dizer mãe, ‘omo’ é filho e ‘ejá’ é peixe. Ela é a mãe dos filhos-peixe e se manifesta no movimento das águas, na transposição da água em vapor que vai para o Orun, o céu, e de lá a chuva é derramada, fazendo a frutificação de toda a terra. Ela também rege nosso equilíbrio emocional, pois o coração simboliza essa estabilidade interna. Portanto, cada orixá tem sua força correspondente na natureza e na vida humana. Um filho de Xangô tende a agir buscando justiça; de Ògún, traz a ordem; Oxum simboliza o amor puro; Iansã, veja só, como em nossa conversa, é a comunicação, que também se expressa através da escrita. Assim, cada pessoa, conforme aquilo que exerce, é filha de um orixá e demonstra sua vocação de tal maneira. Por isso, eles realmente excedem o campo religioso e se revelam de forma concreta em nosso cotidiano. As forças das religiões de matriz africana operam nesse sentido, e nós somos movidos por elas.”
À luz desse aprendizado – que não encerra um entendimento meu, mas abre caminhos para uma escuta mais sensível e para o reconhecimento de sua grandeza e complexidade –, ficou claro que os orixás regem não apenas nosso ser interior, como também a realidade e a natureza ao nosso redor.
A conversa com Pai Bil de Xangô trouxe uma nova conexão e camada simbólica à lenda piauiense da Arraia Grande. Se Yemanjá não atua somente no equilíbrio das águas, mas também em nosso equilíbrio emocional, pela narrativa popular dos pescadores de Luís Correia o termo “equilíbrio” parece ser vital. O equilíbrio para não se desesperar diante daquela adversidade. O equilíbrio das marés perante o ser imóvel. O equilíbrio para aguardar, com fé, a proteção.
As águas podem trazer os seus monstros e mistérios, e também podem nos presentear com a sua calmaria, se ajustamos a nossa percepção.
Caio Sales é pesquisador, ilustrador e escritor, com atuação nos meios cultural e publicitário. É pós-graduado em Marketing e Inovação pela PUC-Campinas, e em Sociologia, História e Filosofia pela PUC-RS. Atualmente, é pós-graduando em Gestão Cultural e Indústria Criativa na PUC-Rio. Tem também qualificação internacional em Marketing e Comunicação pela Academies Australasia, em Sydney, na Austrália. É membro da Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST) e da Associação de Escritores de Bragança Paulista (ASES). @caiosales_art