Em 1494 foi assinado pelos reinos de Espanha e Portugal o famigerado Tratado de Tordesilhas, que dava aos portugueses um território formado basicamente pelo litoral brasileiro. Entanto, com o advento da União Ibérica, que aconteceu entre 1580 e 1640, tais delimitações foram invalidadas. Dessa forma, aliado à crise da economia açucareira, entre os séculos XVI e XVII sertanistas paulistas conhecidos como bandeirantes intensificaram a busca por minérios no interior do continente, além da caça e aprisionamento dos povos originários, assim tomando uma maior parte da América do Sul para os portugueses. Com isso eles descobriam novas riquezas, fortaleciam a mão de obra das lavouras paulistas e lucravam com a venda de escravos indígenas para trabalharem em diversas regiões.
De vestes surradas e uma ambição que necessitava ser alimentada a qualquer custo, esses grupos eram formados por brancos e mamelucos, acompanhados por centenas de indígenas escravizados. Tidos como exploradores natos, aprenderam a sobreviver na mata vivendo de caça e pesca, com técnicas autóctones assimiladas por eles.
Durante as expedições da época dos bandeirantes, começaram a surgir narrativas sobre uma tribo canibal de cunho lendário, nas regiões de São Paulo e principalmente Minas Gerais, que aterrorizava aqueles homens cruéis. Falavam sobre indígenas vampiros, conhecidos como Tatus Brancos, pois tinham a pele alva e viviam isolados em cavernas e aldeias subterrâneas.
Por essas bandas eram frequentes os desaparecimentos de bandeirantes, caçados por algo que resistia às suas armas de fogo, facões e azagaias. Assim corria o boato de que a carne humana era farejada e apanhada pelos Tatus Brancos no anoitecer. Conta-se que um moço, chefe das bandeiras, resolveu então penetrar pelo sertão bravo em busca de respostas para esses mistérios, mesmo contra temerosos pedidos para desistir daquela ideia maldita.
Ao cair de uma noite tenebrosa, o moço e seus compadres pousavam pela mata quando ouviram um burburinho de brados e gargalhadas, que arrepiava a espinha e logo se transformava numa insuportável algazarra. Aquele barulho aumentava ferozmente, ao passo que a investida daquele sedento amontoado de seres pálidos se aproximava como a galope desgovernado.
Agachados atrás das árvores, os bandeirantes do bando foram caindo um a um para aquele povo pigmeu que podia enxergar com clareza até mesmo na mais escura das noites. E que mesmo com tão pouca altura faziam imensos e fatais estragos. Eram fortes e famintos.
Em área não muito afastada das suas tocas no submundo, os Tatus Brancos levaram as presas para dentro das grutas. Carregados estavam cadáveres e corpos moribundos em agonia, mas também haviam vivos rumo à decadência.
Dentre os vivos estava o jovem líder bandeirante, único que no momento da chegada à caverna ainda não havia perdido a razão. Escutava seus companheiros sendo devorados, ao som grosseiro de uma mastigação brutal. Um interminável quebrar de ossos e rasgar de peles que lhe traziam a certeza de estar próximo de um cruel destino.
Porém, por algum motivo, o rapaz não foi prontamente devorado. Permanecia prisioneiro por longas, frias e enlouquecedoras noites, as quais não conseguia sequer contar. Era vigiado de perto por um membro da tribo, que o breu perpétuo não o permitia decifrar.
Notívagos como as corujas, os Tatus Brancos saíam do covil todas as noites, causando tormento pelos matos e cerrados, em busca de novas vítimas para saciar a fome. Contudo, mesmo nesses momentos, o homem permanecia observado pelo ser que desde o início o acompanhava. Desprovido de habilidades noturnas ante seus carrascos, sua fuga parecia cada vez mais improvável. A luz do dia seria sua única salvação.
Até que certa alvorada ele foi surpreendido. O Sol nascia radiante lá fora trazendo esperança.
Acordou sendo arrastado para a entrada da caverna, salvo por aquele que o guardara todo o tempo. Ou melhor… por aquela. Pois com o brilho do amanhecer ele enxergava pela primeira vez com clareza a aparência dos Tatus Brancos, e descobria que na verdade era vigiado por uma mulher da tribo; havia ganhado a simpatia dela. Como os demais, ela tinha cabeleira nívea e olhos gázeos, bem como dentes afiados. Seus fios abundantes caíam sobre as costas, quase cobrindo por completo seu pequenino corpo.
A figura feminina não tinha forças para caminhar mais; cerrava e tentava tampar os olhos para não perecer. Já angustiada e zonza pelo sol, ela gemia e gesticulava para o rapaz escapar.
Por fim, o bandeirante partiu, e a Tatu Branco retornou para as trevas de sua morada. Depois desta experiência ficou claro, como caçadores bárbaros também podem se transformar em uma simplória caça. E como um inusitado ato de amor pode acontecer no mais impensável instante.
Caio Sales é ilustrador e escritor, com trabalhos para os mercados independente e editorial. Pós-Graduado em Marketing pela PUC-Campinas; e Pós-Graduando em Sociologia, História e Filosofia pela PUC-RS. Também é membro da Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST). @caiosales_art