Dentre as histórias que os antigos contam, identifica-se a mais icônica relação de opostos do nosso folclore, manifestada pelos temperamentos conflitantes de dois irmãos: o bondoso Norato e a geniosa Maria Caninana. Provinda do Pará, espalhando-se pela Amazônia e toda região Norte, trata-se de uma história sobre magia e tragédia, que emana dos versos das águas.
Dizem que o casal de irmãos nasceu de uma mulher indígena, que engravidou ao banhar-se no sossego de um rio sob o luar. Alguns atribuem a paternidade ao galante Boto, outros, ao mito de Boiúna, a Cobra-Grande. Gerados no ventre humano, os lendários recém-nascidos vieram ao mundo com a impensável forma de duas serpentes.
Diante de tal visão, espantada, a mãe indígena saiu correndo pelas matas; foi logo consultar a espirituosa figura do pajé de sua tribo, questionando se deveria matá-los. O sábio ancião, conhecedor dos segredos e profecias do círculo dos encantados, afirmou de maneira absoluta que ela não poderia matar aqueles filhos inconquistáveis de uma entidade das águas. Pois, se o fizesse, também morreria. Prezando por sua vida, mas não querendo lidar com aquelas aberrações, ela então abandonou os gêmeos ofídios à margem do rio Tocantins, um dos principais afluentes do rio Amazonas.
Passado algum tempo, os dois cresceram – até demais. Tornaram-se serpentes gigantescas. A filha, Maria Caninana, criou-se com raiva e amargura. Era muito má. Seu olhar transmitia toda fúria e violência que fervilhava em seu interior. Podia-se até notar um sorriso endiabrado, de enfileiradas presas afiadas, esboçado em sua enorme e hedionda face. Alagava os rios, derrubava embarcações, afogava banhistas e infernizava viajantes. Sem dó nem piedade, apenas pelo simples prazer da tortura. Um verdadeiro terror para os ribeirinhas e animais dos rios.
Para se ter ideia do quão ardilosa ela era, certa vez ficou sabendo sobre uma outra serpente mítica, ainda mais colossal, que hibernava em um sono ancestral com sua cabeça embaixo da igreja de Sant’Ana, nas galerias subterrâneas da cidade paraense de Óbidos, localizada à margem esquerda do rio Amazonas. A imensidão do corpo daquele ser primitivo era tanto, que seu rabo inerte estendia-se até o fundo do rio. Dizem que Maria Caninana seguiu até aquelas paragens apenas para morder a cauda da criatura adormecida, na tentativa de acordá-la. Proeza que traria terremotos e destruição aos moradores. Por sorte, seu plano falhou, nada foi despertado. No entanto, um singelo reflexo da cauda abocanhada foi o suficiente para criar uma enorme fenda, que está lá até hoje, atravessando desde um mercado até a frente da igreja.
Já seu irmão Norato, também chamado de Honorato, era a total antítese de Maria Caninana. Criou-se generoso e benfeitor. Estava sempre envolvido em inúmeros feitos e aventuras, salvando a vida de muitos humanos e seres aquáticos. Como um verdadeiro herói dos rios, enfrentava até mesmo terríveis monstros fluviais. Norato também detinha a habilidade de transformar-se num belo rapaz, mas somente à noite – dessa forma, ele podia visitar inclusive sua mãe, pela qual não sustentava nenhum rancor. Deixando à beira do rio sua descomunal casca de pele e escamas, saía elegantemente trajado e voltava ao corpo de cobra pontualmente ao amanhecer. Gostava de divertir-se pelos bailes ribeirinhos em suas noitadas. Revelando-se um exímio dançarino, bem como o povo do fundo, regidos pela vivacidade e fluidez do elemento água. Fazendo-se conhecido pelas redondezas como Cobra Norato.
Tomando consciência de todas as maldades e sofrimentos que sua irmã vinha causando, não apenas aos humanos, como também aos entes fantásticos e animais dos rios, ele se viu na obrigação de repreendê-la. Assim começou o desentendimento dos gêmeos, que culminou em um épico combate entre as serpentes titânicas. Ao final, em meio às águas revoltas, Norato matou Maria Caninana.
Vagueando sozinho pelos rios, já sem a companhia da irmã, Norato nutria o sonho de manter-se com aparência humana para o resto da vida. Contudo, havia apenas um modo de se fazer isso. Uma pessoa corajosa precisaria pingar três gotas de leite materno na boca daquele couro de serpente que ele deixava para trás, e golpear a cabeça escamosa com uma lâmina de ferro virgem, até sangrar ao menos um pouco. Tudo antes do sol nascer. Porém, mesmo imóvel e inofensiva, ninguém tinha coragem de chegar perto daquela carcaça fria e abominável; nem sua mãe, que mesmo tentando, continuava imbuída de traumas. Felizmente, após um longo período, em uma das noitadas, o proseador Norato encontrou um bravo e destemido soldado na cidade de Cametá, que lhe fez esse derradeiro favor.
O encanto finalmente foi quebrado. A carcaça foi reduzida a cinzas. Norato já não era mais cobra, pertencia de vez à linhagem dos homens.
Caio Sales é ilustrador e escritor, autor da série O Imaginário do Mundo. Pós-Graduado em Marketing pela PUC-Campinas, também é criador do blog My Creature Now, sobre criaturas mitológicas e lendas urbanas. @caiosales_art | Acesse: www.mycreaturenow.com