O lobisomem, tal como o conhecemos no Brasil, é sem dúvida uma herança europeia, moldada pelo catolicismo. Contudo, povos e culturas que aqui prosperam desde muito antes das investidas coloniais detêm suas próprias crenças acerca da metamorfose em animais ou da adoção de formas híbridas – são narrativas autênticas, que gostaria de recordar antes de seguirmos para as variações do licantropo brasileiro.
Na mitologia maraguá, do Amazonas, fala-se sobre os Yguarely, pessoas que nascem com a habilidade de se metamorfosear em onça, mas que perdem a noção de seus atos quando transformados, podendo comer desde animais até pessoas. Outra entidade metamorfa que me chama a atenção e vem desse povo conhecido pelas histórias de assombração é o Mimo. Uma entidade nascida daqueles em que a pele se curva em couraça, tornando-se um tatu gigante. Seu destino é morrer aos poucos, pois vai desaparecendo à medida em que se transforma, parecendo um morto-vivo. O aspecto humano daqueles que se tornam Mimo é de pele descorada, com unhas grandes e encardidas. O semblante cadavérico inspira medo e a certeza de que o sujeito está próximo do fim.
Pelas fronteiras entre o Brasil e o Paraguai – com registros também na Argentina –, tropeiros, campesinos e estancieiros do Pantanal falavam sobre uma criatura metade homem, metade onça-pintada, que rondava pelo alto das árvores e cortava trilhas com a fúria de um predador. Chamavam-na de Jaguaretê-avá, nascida de anciãos indígenas que, ao se cobrirem com a pele do animal e invocarem sua força espiritual, assumiam a forma animalesca para garantir a segurança e a caça para o seu povo, protegendo assim o território. Em outra referência, no artigo “Jaguaretê Ava, o mito do homem-onça” (2015), o professor e pesquisador Neimar Machado de Sousa interpreta essa criatura de forma distinta. Nesse mito, traduzido pelo povo Guarani Kaiowá, ele a enxerga como uma metáfora viva que revela, na realidade, a violência sofrida pelos indígenas da região; tanto no passado, sob o aço dos bandeirantes, quanto no presente, sob as balas de pistoleiros e o avanço dos grileiros.
Saindo da cultura pantaneira, conta-se também que pelo ritual dos pajés trajados sob o couro de onça, supridos com incenso de jaborandi e penas de urubu, nascia uma fera de aparência incerta – aqui grafada Yaguaretê-abá. Caminhava com extremidades humanas, mas as costas eram largas, de pelagem espessa, e de sua base surgia uma cauda curta. Os braços de onça-pintada terminavam em garras, e o rosto, embora lembrasse o de um homem, trazia os dentes brutais do felino. Era temido pelos antigos povos do Vale do Rio Tietê e Paraíba do Sul, no Sudeste brasileiro.
O povo autodenominado Mebêngôkre, conhecidos por outros grupos como Kayapó, é uma das maiores nações do tronco Jê, presente no Mato Grosso e no Pará, com aldeias dispersas ao longo do curso superior dos rios Iriri, Bacajá, Fresco e de outros afluentes do Rio Xingu. Em sua rica e complexa cosmologia, originou-se o mito do Kapelubu, que remonta a tempos ancestrais, quando um homem raivoso teria se isolado da aldeia e, com o passar do tempo, nos confins da floresta, transformou-se em uma fera de mais de dois metros de altura, com pés de anta e cabeça de tamanduá, marcada por uma crina de aspecto equino. Essa criatura da mitologia mebêngôkre faz a maior parte de suas incursões à noite, sugando o sangue das vítimas com sua face de tamanduá, penetrando a língua pelo crânio.
Não trago essas histórias como reflexos ou como se fossem o próprio conceito do lobisomem europeu – algo que erroneamente fazem com o Kapelubu. Apresento essas narrativas, na realidade, para mostrar o oposto: como as crenças ligadas à assunção da forma animal – aqui, mais precisamente em feras – são um elemento que pulsa há milhares de anos ao redor do mundo e independem de qualquer influência eurocêntrica, em uma pluralidade existente desde o período paleolítico. Esses mitos são igualmente muito interessantes e nascem legitimamente da cultura e da espiritualidade de cada povo, que deve ser nomeado nas narrativas, pois guardam seus próprios símbolos e motivações.
Na próxima edição, depois desse breve panorama aqui finalizado, seguiremos às narrativas brasileiras que, de fato, receberam a marca do lobisomem português.
Caio Ambrósio Sales é pesquisador, ilustrador e escritor, com atuação nos meios cultural e publicitário. É pós-graduado em Marketing e Inovação pela PUC-Campinas e também em Sociologia, História e Filosofia pela PUC-RS. Atualmente, é pós-graduando em Gestão Cultural e Indústria Criativa na PUC-Rio. Tem também qualificação internacional em Marketing e Comunicação pela Academies Australasia, em Sydney, na Austrália. É membro da Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST) e da Associação de Escritores de Bragança Paulista (ASES). @caiosales_art