A Lenda e a Devoção Popular
Seria injusto, depois de tantos textos publicados com a intenção de preservar e tratar de memórias e culturas pelo Brasil, eu não considerar mencionar também as memórias que vivem em cada família. Mais do que as lembranças de um povo ou de uma cidade, a memória é um universo particular dentro de cada lar, feito de afetos e histórias. Patrimônios imateriais individuais que também merecem preservação. No Cemitério da Saudade, de Bragança Paulista, há uma imensidão de registros e lembranças que, embora tragam a tristeza da saudade – como o próprio nome já diz –, também despertam alegria, pois trazem recordações de pessoas que, em algum momento do passado ou até do presente, quando relembradas, nos fazem sorrir. Por isso a importância de reservar uma reflexão por aqui, mesmo que despretensiosa e bastante pessoal, a respeito desse tema.
Nesse sentido, apresento uma lenda, trágica em sua contação, mas que servirá de ponto de partida para pensar sobre a valorização e celebração das memórias locais que, do micro se expandem e se integram ao macro da História e da cultura, seja de um bairro, ou de um município, além da preservação desses patrimônios que resguardam as memórias de nossos entes queridos e, na particularidade de cada um, onde celebramos nossos antepassados. É há muito tempo, na cidade de Bragança Paulista, que se inicia essa lenda…
Era uma vez um lavrador dedicado, que limpava uma área de terra como de costume, garantindo o sustento da família. Quando a hora do almoço chegou, o homem abriu sua marmita, comeu com gosto e, satisfeito, deitou-se para tirar uma sesta, enquanto seus filhos chegaram animados das lições da manhã e puseram-se a brincar de esconde-esconde pelos arredores.
Ao retornar ao trabalho, empunhou a foice e começou a carpir, quando de repente, com a destreza de anos de labuta, entre um golpe e outro, sentiu o impacto da lâmina contra algo duro. Espantado, afastou o mato e, para seu horror, enfrentou a pior visão possível: havia arrancado a cabeça de sua própria filha, que se escondia ali do irmão. Aquele homem do campo, tomado de desespero e lamúrias, enlouqueceu. Largou tudo e partiu sem rumo… para nunca mais ser visto.
Diz a lenda que o Cemitério da Saudade começou a se formar justamente nesse lugar. Muitos anos depois, e muitos anos atrás, trabalhadores que escavavam e limpavam a área teriam encontrado, durante a divisão do terreno, um crânio solitário. Não havia esqueleto completo, não havia identificação. Os curiosos da época afirmaram ser algo sobrenatural. Conta-se então que as autoridades decidiram enterrá-lo ali mesmo, no ponto onde hoje, de fato, encontra-se o famoso túmulo da Santa Caveirinha.
O povo, comovido, passou a rezar por aquela cabeça perdida. E, com o tempo, começaram a atribuir milagres à Caveirinha. Surgiram placas de agradecimento e pessoas que esfregavam o cenotáfio em forma de crânio para fazer pedidos.
Quanto ao pai da menina, algumas narrativas contam que sua alma penada ainda vaga pelo cemitério. Não faz mal a ninguém, mas às vezes, no silêncio da noite, os mais sensitivos podem ouvir o pranto de um lavrador louco, que jamais conseguiu se perdoar pelo acidente.
Como a história se propagou por tradição oral e “em cada conto se aumenta um ponto”, entre crentes e descrentes, é possível encontrar muitas versões. A alma do pai, nessa lenda, parece simbolizar e encarnar a figura daquele que não encontra mais lugar nem entre os vivos e nem entre os mortos, justamente pela dor infinita e desamparo que carrega. Diferente do folclórico Corpo-Seco, que, de tão ruim, nenhum lugar aceitou e a terra até o cuspiu, aqui quem não se aceita é o próprio lavrador louco da lenda, que não consegue se encontrar após o fatídico dia.
Por conta da lenda, também somos apresentados ao elemento dos milagreiros de cemitério, bastante presentes na cultura popular. No decorrer da pesquisa, entrevistei Thiago de Souza, pesquisador cemiterial, membro da Associação de Estudos Cemiteriais (ABEC), idealizador do projeto “O Que Te Assombra?” e – em parceria com Silo Sotil – autor do livro “Milagreiros de Cemitério – Cidade de São Paulo”, de 2024, que já realizou pesquisas em Bragança Paulista e cujo interesse, expedições e conhecimento se somam às camadas históricas e antropológicas aqui percorridas.
“Bom, eu adoro a história da Santa Caveirinha por várias razões, especialmente pela correspondência que ela tem com Luigi Guglielmo, um milagreiro do cemitério da Vila Mariana, da cidade de São Paulo, conhecido como Santinho do Cambuci. Ele morreu ainda jovem, na entrada da vida adulta, e foi enterrado em Bragança Paulista. É aí que, acredito eu, começa a história por trás da Santa Caveirinha. Na campa dela está a foto de Luigi Guglielmo que, para os locais – e isso me surpreendeu muito quando descobri – era vista como a imagem do pai da menininha da história, dentro desse universo das narrativas populares. A versão dizia que o pai enlouqueceu e saiu sem rumo, e por isso as pessoas passaram a acreditar que aquela foto representava o pai da criança. Mas, na realidade, a foto é de Luigi Guglielmo, que nunca teve filhos. O que imagino é que tenha havido um processo devocional desde o sepultamento dele, mas, quando o corpo foi transladado, sua verdadeira origem acabou se perdendo. Aquele crânio em cima da campa é um mistério para mim; acredito que seja apenas um cenotáfio e que não haja nada sepultado ali. Pode ter havido uma confluência com a história do Anjo do Martírio, muito conhecida em Bragança Paulista e ligada à concessão do terreno e à ordem das autoridades locais da época. Então, talvez, na minha opinião, as histórias de Luigi Guglielmo e do Anjo do Martírio tenham se misturado de alguma forma, gerando toda a devoção popular da Santa Caveirinha e a lenda do lavrador que ficou louco.
Os milagreiros de cemitério fazem parte de um fenômeno cemiterial que segue a ritualística do catolicismo não oficial, vinculado a devoções familiares anteriores ao cristianismo. É importante destacar que o milagreiro de cemitério não é santo popular: o santo popular passa por canonização e outorga da Igreja, enquanto o milagreiro é reconhecido pela devoção local, sem acolhimento oficial. Ambos são vistos como mártires, mas enquanto os santos católicos são ligados à fidelidade da fé e do sacrifício religioso, os milagreiros podem ter origens diversas, cristãs ou não, incluindo nas religiões de matriz africana, sem obrigatoriedade de dogma. O fenômeno é fortemente comunitário, carregado de empatia e de dor compartilhada. A espiritualidade dos milagreiros não é reconhecida por religiões oficiais, mas constitui patrimônio cultural imaterial, protegido pelo direito à livre manifestação religiosa. Suas histórias são importantes porque revelam passagens históricas, traumas coletivos e memórias que precisam ser conhecidas e preservadas”, disse Thiago de Souza, reforçando, também, o tema central desse texto, que continua na próxima edição, e que não é o medo ou a tristeza, mas a preservação das memórias que nos preenchem, no qual trato novamente do Cemitério da Saudade como um guardião silencioso desse patrimônio imaterial.
Caio Ambrósio Sales é pesquisador, ilustrador e escritor, com atuação nos meios cultural e publicitário. É pós-graduado em Marketing e Inovação pela PUC-Campinas e também em Sociologia, História e Filosofia pela PUC-RS. Atualmente, é pós-graduando em Gestão Cultural e Indústria Criativa na PUC-Rio. Tem também qualificação internacional em Marketing e Comunicação pela Academies Australasia, em Sydney, na Austrália. É membro da Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST) e da Associação de Escritores de Bragança Paulista (ASES). @caiosales_art