Pensando na entrevista da última edição, com o pesquisador Andriolli Costa, além do olhar acadêmico, é necessário ouvir também quem traduz esses mitos em arte e didática. Nesse sentido, conversei com Hilton Mercadante, conhecido como Merka, bragantino de coração e autor de importantes trabalhos, entre os quais destaco o livro infantojuvenil “Filhos da Mata”, publicado pela primeira vez em 2000. Na obra, ele escreveu e ilustrou um material que equilibra informação e acessibilidade, capaz de despertar nos jovens o interesse pelo folclore brasileiro ao narrar suas histórias sem infantilizar o tema ou subestimar seus leitores, enriquecendo-as ainda mais com a imersão gráfica. Trata-se de uma verdadeira porta de entrada para que os mais interessados possam, futuramente, se aprofundar no essencial papel da preservação das memórias e da diversidade cultural do Brasil.
Com décadas de atuação nas artes gráficas e na educação artística, Merka compartilhou comigo sua visão do mito do lobisomem, por ser o tema central deste artigo, e principalmente a importância da inserção séria da cultura popular desde a educação escolar:
“O lobisomem, embora seja um mito ancestral que remonta à Grécia Antiga, no Brasil ganhou um tempero particular, fortemente ligado ao catolicismo popular – a sexta-feira, o batismo realizado pelo irmão mais velho para evitar a sina, entre outros elementos. Como nosso território, no período colonial, era quase inteiramente coberto por florestas, acabou se tornando um terreno fértil para que o mito se cristalizasse.
Na educação escolar, acredito que, quando colocamos em pé de igualdade a chamada cultura popular e a chamada cultura erudita, sem distinção ou superficialidade, deixamos uma semente interessante na cabeça das pessoas. É assim que se cria um movimento no repertório interno de cada um nesse campo de conhecimento completamente legítimo. A semente desse interesse também pode ser plantada por meio da arte. Em minhas ilustrações, por exemplo, procuro apresentar os nossos criptídeos com uma influência da cultura pop (Scooby-Doo, Família Addams etc.), mesclada à visão cabocla”, finalizou o multiartista, também dedicado a pintura e modelagem, o qual foi ilustrador da Revista Recreio e participante de exposições como Ilustrando em Revista, que percorreu quinze capitais brasileiras, e Golden Pen, em Belgrado, na Sérvia.
Assim, entre a análise simbólica e acadêmica de Andriolli Costa e a sensibilidade artística e educacional de Hilton Mercadante, percebemos como o mito do lobisomem segue sendo parte essencial de nossa herança cultural, preservado na memória popular por meio de pesquisas e registros, e difundido também pelas práticas de ensino e arte, elementos complementares que podem ser aplicados em tantos outros saberes. Afinal, um interesse pode conduzir a outro. O fascínio por um mito e por uma cultura é capaz de despertar a curiosidade por muitas outras, em um eterno ritmo de aprendizado e descoberta.
Inclusive, na conversa com Hilton Mercadante, também houve a rememoração de um causo de Lobisomem ocorrido em Bragança Paulista, minha amada terra, no final dos anos 1960. Os antigos contavam que, perto da Capela da Santa Cruz dos Enforcados, na Rua da Liberdade, quando ainda havia poucas casas, um homem teria partido para a labuta e deixado sua esposa sozinha, cuidando do bebê recém-nascido. O sentimento de solidão no alto da tal região se intensificava na calada da noite, mas tudo parecia caminhar em paz, até que ela escutou um estrondo abrupto vindo de fora, como se algo forçasse com brutalidade a tramela da janela de estética antiga. Em sobressalto, ao espiar pelo vão estreito, seus olhos foram surpreendidos por uma silhueta de orelhas agudas, que não eram de uma fera comum, tampouco de um homem. O vulto se insinuava como um enorme cachorro, caminhando feito um predador, em pé.
Diante da monstruosidade, com a criancinha no colo, ela se pôs a rezar, e o temor não conteve suas palavras, proferidas uma a uma em pedido de proteção. Naquela noite, sua fé foi vitoriosa; entretanto, a criatura não partiu sem deixar rastros.
Na manhã seguinte, os vizinhos foram ali chamados para atestar a realidade do que ela tinha visto. Naquele instante, todos testemunharam a presença e o ímpeto maldito do lobisomem: as janelas estavam todas cravadas com arranhões tão selvagens quanto um uivo noturno.
Àquela região, compreendendo também a Vila Aparecida, já foram creditadas muitas assombrações, dentre vultos errantes e uma mula-sem-cabeça, frutos da pesada carga histórica do local. Ali diziam ser uma rota de fuga dos escravos que, com seus nomes apagados da história, e sem qualquer romantismo, ajudaram a construir o Brasil. No século XIX, existia uma imponente árvore por tais paragens, na qual os capturados eram enforcados. Contudo, houve um cativo que, todas as vezes em que o executor puxava a corda, ela se rompia. Os presentes naquele dia ficaram espantados e entenderam como uma providência divina, levando-os a libertar o rapaz. A partir disso, as terríveis execuções no local teriam cessado, e fora construída a emblemática Capela da Santa Cruz dos Enforcados – inclusive, recomendo o excelente documentário “Invisível: a História dos Clubes Sociais Negros de Bragança Paulista”, de 2021, com direção do documentarista Mário de Almeida, e participação de Izilda Toledo, Márcio Macedo, Jacinto Silva, Pai Bil de Xangô, entre outras personalidades que trazem luz à história da população negra brasileira e, claro, bragantina.
Quanto ao objeto da narrativa e do estudo – o lobisomem – eu me pergunto: seria o lobisomem nessa lenda de Bragança Paulista, de forma até inconsciente pelos antigos, o símbolo de um instinto hediondo que também deixou marcas, dessa vez, por uma região que testemunhara tanta crueldade e selvageria por parte dos escravagistas?
A verdade é que são vastos os causos de lobisomem pelo interior do estado de São Paulo, com seu mito amalgamado à nossa cultura popular caipira e à nossa história. Esse é um ponto que gosto de frisar bastante: como podemos ter um olhar e um recorte histórico, a partir dos mitos e das lendas presentes em cada cultura, seja ela de alcance nacional ou local, compreendendo assim a nossa comunidade. Inclusive, há um município da região que se destaca, a ponto de ser reconhecido como a terra do lobisomem, carregando até mesmo em sua fundação uma crença relativa aos licantropos. Mas essa história contarei na próxima edição.
Caio Ambrósio Sales é pesquisador, ilustrador e escritor, com atuação nos meios cultural e publicitário. É pós-graduado em Marketing e Inovação pela PUC-Campinas e também em Sociologia, História e Filosofia pela PUC-RS. Atualmente, é pós-graduando em Gestão Cultural e Indústria Criativa na PUC-Rio. Tem também qualificação internacional em Marketing e Comunicação pela Academies Australasia, em Sydney, na Austrália. É membro da Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST) e da Associação de Escritores de Bragança Paulista (ASES). @caiosales_art