Dando sequência ao texto da última semana, que conta a lenda e os elementos folclóricos que envolvem a Santa Caveirinha, onde o tema central não é o medo ou a tristeza, mas, sim, a preservação das memórias que nos preenchem, o Cemitério da Saudade age como um guardião silencioso da história bragantina.
Há muito tempo, conforme registrado pelo historiador Saturnino Pacitti, os sitiantes bragantinos eram sepultados em Atibaia. Em 1763, no alto de uma das muitas colinas da bela Bragança Paulista, os falecidos passaram a ser sepultados no entorno de uma capela erguida para Nossa Senhora da Conceição. Contudo, em 1797, um sepulcrário foi construído no Parque das Pedras, na localidade que hoje conhecemos como Jardim Público, de onde os corpos seriam transferidos anos depois. Em meados do século XIX, Bragança Paulista já havia conquistado sua emancipação de Atibaia e vivia os frutos do chamado desenvolvimento, com o escoamento das grandes produções de café da região pela Estrada de Ferro Bragantina.
Foi nesse período que, em 1º de janeiro de 1900, o Cemitério da Saudade foi oficialmente inaugurado nos altos da Vila Municipal. O primeiro concessionário de sepultura registrado em livro foi Izidro Gomes Teixeira, um dos cidadãos que, junto de Felippe Rodrigues de Siqueira, esteve à frente da construção de um dos prédios mais emblemáticos da cidade – e o meu favorito, diga-se de passagem –, hoje conhecido como Centro Cultural Prefeito Jesus Adib Abi Chedid, abrigando o Teatro Carlos Gomes e a Biblioteca Municipal Dra. Adalzira Bittencourt em seu complexo.
Através do portal com mosaicos do Cemitério da Saudade de Bragança Paulista, passando pelos monumentos de valor histórico e pelas fotografias imbuídas de sentimentos, somos transportados a um local que detém o papel social de acolher as famílias em momentos delicados, além de preservar tradições e memórias da cidade, fortalecendo os laços comunitários. Em uma das visitas que fiz ao local para a pesquisa, tive acesso a registros históricos bastante organizados, que auxiliaram na composição deste texto, onde Ricardo Lozada Junior, o atual administrador, gentilmente me recebeu e também compartilhou algumas histórias. Assim, a memória surge como expressão imaterial, fazendo nossos atos terem coerência e sentido, enquanto o patrimônio cultural é onde elas se materializam e adquirem voz através das identidades.
Trazendo o olhar de uma especialista no assunto quando se trata do olhar histórico e cultural acerca do tema, conversei também com Viviane Comunale, historiadora, professora, mestre e doutora em Artes Visuais, além de pesquisadora no estudo da arte tumular e de suas simbologias para a preservação e conservação do Patrimônio Cultural Funerário, reforçando que cada pedra e cada inscrição no mármore não são mera aparência fria e resquício de lamentações, pois igualmente carregam narrativas vivas que permeiam espaços e identidades:
“Pertinente esse tema, Caio, porque o que a gente não pode esquecer é que o cemitério foi pensado para o convívio social. Ele era o reflexo do mundo dos mortos no mundo dos vivos, e esse reflexo estava presente ali. Frequentava-se o cemitério para rememorar a história dos antepassados, dos entes queridos, algo perfeitamente comum. Com o tempo, isso vai se perdendo, à medida que a sociedade passa a esconder a morte. Hoje, olhar para o cemitério é vê-lo não apenas como um aparelho sanitário e de saúde pública – afinal, ele tem essa função prática –, mas também como um lugar de memória. Ao adotar esse olhar, começamos a enxergar a presença do que chamamos de patrimônio cultural, mais especificamente o patrimônio cultural funerário. Estamos falando de túmulos e lápides, mas também de ritos funerários e epitáfios gravados em homenagem a quem se foi. É fundamental reviver essa visão dos cemitérios como espaços de rememoração de nossas histórias, pois isso reforça a importância de pensarmos nos nossos antepassados. Inclusive, quando deixamos de frequentar esses espaços, outros passam a ocupá-los, e foi assim que começamos a perceber uma série de furtos e até casos de pessoas assaltadas dentro de cemitérios em diferentes cidades. É preciso preservar e valorizar esses lugares não apenas como parte da história da sociedade, mas também como expressão de pertencimento. Quanto mais chamamos atenção para a necessidade de preservação do patrimônio cultural funerário – como no meu caso, por exemplo, por meio de visitas monitoradas, organizadas com acompanhamento especializado –, mais fortalecemos esse movimento coletivo, com impacto em projetos, leis e políticas de preservação e tombamento.
A partir do momento em que entendo que o cemitério é um patrimônio cultural material e imaterial, que está ali como um lugar de histórias, como um lugar de memória, também passo a utilizá-lo como uma fonte histórica. Ele me ajuda a entender como funcionava aquela sociedade em determinado recorte de tempo e me permite fazer uma comparação com o momento atual da história. Os cemitérios precisam ser valorizados para que possamos compreender, inclusive, essas mudanças que acontecem. Porque, antes, construíam-se túmulos extremamente suntuosos que, de alguma maneira, queriam contar a história de uma pessoa que teve grande importância naquela sociedade, seja de forma política ou até mesmo econômica. Eu preciso entender tudo isso: quem é essa pessoa? Por que ela fez isso? O cemitério me proporciona esse tipo de estudo, permitindo que eu faça um paralelo com os dias de hoje. Assim, poder público e sociedade precisam agir de forma conjunta e efetiva para garantir a continuidade desses espaços, compreendendo que preservá-los é, ao mesmo tempo, preservar a própria história”, finalizou a historiadora, que também é filiada a Associação Nacional de História (ANPUH) e da Associação de Estudos Cemiteriais (ABEC).
Essa espécie de tabu é algo que nos leva a uma profunda reflexão, pois envolve diferentes formas de enxergar um mesmo tema. Basta observar a cultura mexicana, com o Día de los Muertos, em que se celebra os antepassados em vez de lamentar sua perda; ou ainda o cemitério do belíssimo bairro da Recoleta, em Buenos Aires, considerado um museu a céu aberto e um dos mais visitados do mundo, graças à sua arquitetura, às histórias e às personalidades que ali repousam. Essas comparações mostram o quanto o olhar sobre a morte e a memória é subjetivo.
Pessoalmente, admito que nunca gostei de frequentar esses espaços, justo pela saudade intensa dos entes queridos e pelas lembranças de choros e despedidas. Ainda assim, essa foi uma das pesquisas in loco mais intensas e difíceis que já realizei. Após refletir a respeito de como outras culturas encaram o tema e ouvir pesquisadores como Thiago e Viviane, passei a me fazer uma pergunta: imagina uma memória que está em um local abandonado ou onde as pessoas sentem medo? Uma memória que nunca é visitada? Uma memória que nunca é celebrada ou nunca recebe uma flor? Isso não me pareceu certo e me fez compreender ainda mais a importância daquele espaço.
Quem me conhece sabe o quão próximo fui do meu avô Raphael, algo que se fortaleceu ainda mais quando entrei na vida adulta, unidos pelo amor ao time do povo, o Corinthians. Uma das últimas lembranças que tenho com ele é nossa visita ao Parque São Jorge, no memorial do clube, onde ele já havia estado antes e comprado um livro, que mais tarde me deu com dedicatória. Sua partida foi dura, muito dura e, justamente por isso, nunca tive coragem de fazer uma visita após o falecimento.
O aniversário dele foi quatro dias antes da data em que me dirigi ao Cemitério da Saudade para uma das pesquisas sobre a lenda que envolve a Santa Caveirinha. De garganta fechada, decidi que era a hora de encarar essa barreira: não deixá-lo ali “sozinho” – entre muitas aspas, porque sei que era e continua sendo uma pessoa muito querida e visitada. A caminhada pareceu longa, e o reencontro foi acompanhado por lágrimas e por um vento que parecia silenciar todo o entorno. Foi difícil não desabar com os olhos escondidos pelos óculos escuros, mas, curiosamente, depois de mais de dez minutos, creio eu, a tristeza foi dando lugar a um sentimento de não estar sozinho.
Não falo de algo sobrenatural ou religioso, mas de uma sensação de preenchimento – como se ele não tivesse partido de forma tão absoluta quanto parecia. Era como se a foto me olhasse, como se me escutasse. É claro que nada substitui a presença física, mas o que começou de forma dolorosa tornou-se um encontro de algum modo, reconfortante, pois mostrou que a sua permanência em nossa história e em nossa família é eterna. Foi como se uma parte de mim que estava faltando tivesse retornado parcialmente naquele instante, afinal, parte das nossas lembranças me preencheu ali.
Foi difícil, como seria para muitos, mas ficou o alento de saber que ainda posso “vê-lo” e celebrá-lo de diferentes formas, inclusive neste texto. Ele era uma pessoa muito inteligente, que gostava muito de ler, fossem livros ou jornais.
Em uma singela e humilde homenagem – pouco diante de tudo o que ele representa –, escrevo aqui com a alegria de quem se sentiu um pouco menos sozinho depois da visita. De quem se sentiu um pouco mais reconfortado em saber que os registros e espaços das memórias permanecem também materializados. A alegria de quem espera que nossos entes queridos sejam sempre lembrados com um sorriso no rosto, pois com certeza é o que mais gostariam de receber. Como meu saudoso tio João, que, junto com meu pai, me ensinou a andar a cavalo, ou meu querido vô Cido, que sempre foi muito carinhoso.
Por isso, entre tantos textos sobre memórias e culturas do Brasil, não poderia deixar de registrar, também, as que vivem em minha família, porque, no fim, é do interior de cada casa que nasce a história de um povo.
Caio Ambrósio Sales é pesquisador, ilustrador e escritor, com atuação nos meios cultural e publicitário. É pós-graduado em Marketing e Inovação pela PUC-Campinas e também em Sociologia, História e Filosofia pela PUC-RS. Atualmente, é pós-graduando em Gestão Cultural e Indústria Criativa na PUC-Rio. Tem também qualificação internacional em Marketing e Comunicação pela Academies Australasia, em Sydney, na Austrália. É membro da Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST) e da Associação de Escritores de Bragança Paulista (ASES). @caiosales_art