A ligação entre dragões e serpentes, algo que já abordei em textos como “Dragões Brasileiros: entre símbolos e influências” (2022) e “Dragão de Ipu – Folclore Brasileiro” (2021), parece uma percepção do inconsciente coletivo, também apontada por alguns estudiosos do tema. Em pesquisas recentes sobre a mitologia Wapichana, fui apresentado a uma criatura chamada de dragão, ou cobra-dragão, conhecida como Rapiru, que tem sete línguas de ouro, revelando tal composição dracônica e ofídia em uma cultura indígena brasileira e guianense.
Pelo norte amazônico, entre colinas verdes e florestas esparsas, onde se pode vislumbrar serras antigas e a vastidão da mata, o povo Wapichana ocupa o vale do rio Tacutu, que transcende o território de Roraima, compondo uma população estimada em 13 mil indígenas falantes de Aruak na região fronteiriça entre o Brasil e a Guiana.
Seja sobre as cabeceiras do rio Miliwau, cruzando o sul da cabeceira do rio Rupununi, ou pelos arredores do rio Tacutu, Rapiru atravessa os cenários e as áreas fronteiriças por gerações. Descrita como uma cobra muito maior do que qualquer outra – ora com mais de trinta metros de comprimento e três de altura, ora da altura da cintura de um adulto –, dizem que seu corpo é bastante robusto e dotado de pés de jacaré, por isso, é relatado como um dragão com rosto de cobra. No entanto, o que mais chama a atenção nesse ser descomunal são as sete atrativas e reluzentes línguas de ouro.
Os antigos atribuem fenômenos naturais à criatura ancestral. Enquanto os raios e trovões são lançados dos céus para o chão, a cobra-dragão ascende do chão aos céus. Sua ação é confirmada nos arco-íris após os temporais. Afirmam, também, que o seu sopro viaja pela fronteira em forma de ventania.
Algumas narrativas mencionam sua caverna como um local oculto pelas montanhas e por um lago misterioso, com as proximidades da entrada mantidas sempre limpas pelo sopro da entidade. Os habitantes da região, porém, têm o cuidado de evitar encontrar seu covil e serem atacados.
Há quem diga que, certa vez, dois homens se depararam com a criatura em fúria e que, pela ganância diante das belezas douradas que ela revela ao se mostrar em esplendor, um deles deixou que o outro fosse devorado para tentar roubar as sete línguas de ouro, que ficariam só para ele e o tornariam muito rico; por conta disso, o dragão Rapiru se sente cada vez mais ameaçado pelos garimpeiros que atuam ilegalmente na região do Tacutu, e manifesta sua raiva por meio dos ventos e trovões cada vez mais fortes.
Sob o nome de Urupiru, a figura mitológica foi registrada pela primeira vez em The Central Arawaks, publicado em 1918 pelo antropólogo norte-americano William Curtis Farabee, em viagem pela América do Sul. A obra apresenta algumas variações na narrativa oral, sendo uma delas o fato de a criatura possuir uma língua rubra e não bifurcada, como a de um humano, pedras trituradoras em seu estômago, bem como a capacidade de se transformar em homem. Já como uma cobra-dragão, Rapiru também aparece em outra pesquisa in loco, do professor e antropólogo Alessandro de Oliveira, no artigo “Awnetypan amazad: políticas indígenas do habitar e gestão territorial-ambiental em terras indígenas”, publicado no Anuário Antropológico de 2020, em que é apresentada a narrativa oral com as características em ouro; em algumas outras versões, a entidade teria sete cabeças, enxergando tudo por todos os lados.
Neste artigo brasileiro, entendemos que os Wapichana incorporam em sua mitologia e cosmologia os eventos resultantes da violenta imposição de fronteiras em terras sagradas – por ações memoráveis do passado e do presente, em sentidos vivenciados –, como o permanente problema do garimpo ilegal. Dito isso, as sete línguas de ouro do dragão seriam a perdição diante do desejo desgovernado.
Até os dias de hoje, Rapiru permanece inquieto e em cólera, emitindo os seus sinais, pronto para um bote certeiro com sua agilidade sobrenatural.
Caio Ambrósio Sales é pesquisador, ilustrador e escritor, com atuação nos meios cultural e publicitário. É pós-graduado em Marketing e Inovação pela PUC-Campinas e também em Sociologia, História e Filosofia pela PUC-RS. Atualmente, é pós-graduando em Gestão Cultural e Indústria Criativa na PUC-Rio. Tem também qualificação internacional em Marketing e Comunicação pela Academies Australasia, em Sydney, na Austrália. É membro da Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST) e da Associação de Escritores de Bragança Paulista (ASES). @caiosales_art