Ser corrompido pelo próprio vazio seria o efeito de forças externas ou a consequência inevitável de nossas escolhas mundanas?
Em diversas datas ao redor do mundo, as proteções e os cuidados contra intenções malignas se intensificam, por conta da crença em um rasgo entre o plano físico e o além, justamente pelo temor de uma dita corrupção espiritual. Um exemplo disso é a Noite de Walpurgis, celebrada em países da Europa Central e do Norte, como República Tcheca, Alemanha e Suécia, quando fogueiras são acesas para afugentar espíritos, e amuletos são usados contra as entidades que aguçam sua atividade nesse momento. Há ainda quem acredite que os sonhos ocorridos nessa noite sejam fenômenos de clarividência.
E o que dizer dos eventos sobrenaturais da Quaresma, no Brasil? Muitos corações se tornam igualmente inquietos diante dos horrores que ganham vida no imaginário popular durante esse período. Os quarenta dias da Quaresma remetem ao jejum e à provação sagrada de Jesus Cristo diante do demônio, no deserto da tentação. Nesse período, acredita-se que seres como lobisomens, mulas-sem-cabeça e espectros insondáveis atravessam a fronteira entre mundos e perambulam livremente entre nós. De acordo com os folcloristas, é durante esses dias que as pessoas recorrem a interditos, especialmente na Sexta-feira Santa, o terrível dia da crucificação. É quando antigos horrores retornam e as criaturas nefastas alcançam maior poder, até o momento do aguardo e da ressurreição, quando enfraquecem novamente. O que resta, então, são as histórias reproduzidas no cerne deste tempo de danação.
Em Atibaia, interior de São Paulo, cidade que já visitei muitas vezes e onde trabalhei, o Largo da Matriz carrega parte da história local com uma bela igreja de arquitetura eclética em tons de bege e vermelho terroso, além de uma visão distante da Pedra Grande, exuberante monumento natural e cartão-postal. No entanto, todo lugar, por mais bonito que seja, também tem seus causos sobrenaturais. De acordo com registros – feitos durante a primeira metade do século XX e compilados pelo pesquisador atibaiano Pedro Alvim no livro “Recordações de Atibaia” (2024) –, escritos pelo jarinuense Francisco da Silveira Bueno, jornalista, lexicógrafo e catedrático de filologia da USP, era justamente nas noites de Sexta-feira Santa, quando as aberturas do além se escancaram de vez, que algo insólito costumava encarnar por ali.
O erudito documentou que, antigamente, pelas altas horas desse período, no chão do largo surgia a estranha assombração de um homem estendido, como se estivesse morto, sem respirar, sem falar, sem se mover. Ao seu lado, enunciava-se em pompa maldita um enorme gato de pelagem negra. A criatura detinha uma presença sinistra e não o abandonava; afagava-lhe a cabeça lentamente com as patas, como se o mantivesse sob domínio em um aviso de posse.
A incauta testemunha sentia um vento súbito naquele instante, transmitido em fantasmagoria e desordem, ao espalhar jornais soltos e rasgados pelo local. A cena não era apenas um mistério sem explicação, era o avistamento de um condenado.
Conta-se que o homem seria o avô de um importante político da região em épocas passadas, uma figura influente em seu tempo, e que teria vendido a alma ao demônio para conquistar tamanho poder. O felino grande não seria, portanto, um animal deste mundo ou uma mera visão melancólica, mas uma manifestação do ser maligno, presente para vigiar e comprovar o pacto com exibicionismo. Ali, diante do povo, repousava então um corpo oco de alma, pois esta estaria longe, ardendo nas chamas infernais.
Sua ganância custara mais caro do que qualquer poderio político seria capaz de pagar.
Essa narrativa fez-me recordar das conhecidas histórias sobre o Famaliá no folclore brasileiro, também associado ao período da Quaresma e aos desejos egoístas. Além disso, em certo nível, embora não haja qualquer influência ou vínculo de origem, a criatura felina remete-me a uma entidade bastante interessante do folclore gaélico: o Cat-Sìth, ou Cait Sidhe, um gato igualmente enorme, do tamanho de um cão de grande porte, inteiramente preto, exceto por um tufo de pelos brancos no peito. Em algumas versões, esse ser de olhar vívido assombrava as terras escocesas e irlandesas, causando temor e desconfiança, pois acreditava-se que ele rondava funerais para roubar a alma dos mortos antes que chegassem ao outro mundo. Em certas narrativas, o Cat-Sìth seria uma fada espectral assumida na forma do grande felino; em outras, uma bruxa transformada em gato pela nona vez, condenada a permanecer assim para o resto da vida. Também podia ser sinônimo de prosperidade durante o festival de Samhain, pois acreditava-se que traria boa sorte às casas que lhe oferecessem um pires de leite. Aos que não o fizessem, recairia uma maldição curiosa: suas vacas teriam o leite secado até o próximo festival.
Na lenda do Gato Negro do Largo da Matriz, embora ele se caracterize também pelo seu tamanho singular, percebe-se uma provável influência da associação dos gatos pretos a elementos ruins. Esse pensamento terrível merece um importante alerta, pois persiste até hoje e ainda prejudica animais inocentes. Abrigos e ONGs relatam que os gatos pretos têm mais dificuldade de encontrar um lar e em sextas-feiras 13 muitas vezes sua doação é suspensa por risco de maus-tratos – um crime asqueroso que deve ser denunciado sem hesitação. Tal discriminação remonta à Idade Média e ao período da Inquisição – que também atuou no Brasil colonial –, quando mulheres independentes eram chamadas de bruxas e retratadas ao lado de gatos e outros animais de hábitos noturnos, como se isso justificasse qualquer punição. É preciso transmitir que essas narrativas lendárias devem ser entendidas apenas em seu contexto simbólico, histórico e antropológico. A verdadeira prática está no respeito à vida e nas lições e reflexões positivas que absorvemos dessas histórias.
Então, obviamente, não há mau agouro ou maldade nos animais, sejam de quais forem as espécies. O que existe, na realidade, é uma transferência de responsabilidades por atos ruins praticados por nós, seres humanos, contra eles e até mesmo contra outras pessoas. Mesmo nessa lenda atibaiana, o mal, embora simbolizado no felino ou no período do ano em que se evidencia, encontra-se, de fato, no próprio homem; em sua ambição desmedida pelo poder. O que podemos extrair dessa narrativa oral é, portanto, a lição de que até os poderosos perdem sua essência mais pura, metafórica ou factual, quando seus objetivos se sobrepõem à sua humanidade. A ganância não preenche a vida; ao contrário, transforma-nos em cascas vazias.
Assim, naquele local, em certas noites maculadas, esse gato sobrenatural pode até ressurgir em sua desproporção, com a pelagem quase amalgamada às sombras das quais se manifesta, olhando para o nada, enquanto acaricia o corpo corrompido e sem alma, mas estará ali apenas para lembrar aos transeuntes o peso da culpa. Afinal, toda decisão carrega consequências. E essas consequências podem ser eternas em um fragmento da escuridão.
Caio Sales é pesquisador, ilustrador e escritor, com atuação nos meios cultural e publicitário. É pós-graduado em Marketing e Inovação pela PUC-Campinas e também em Sociologia, História e Filosofia pela PUC-RS. Atualmente, é pós-graduando em Gestão Cultural e Indústria Criativa na PUC-Rio. Tem também qualificação internacional em Marketing e Comunicação pela Academies Australasia, em Sydney, na Austrália. É membro da Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST) e da Associação de Escritores de Bragança Paulista (ASES). @caiosales_art