Nas terras ao redor do rio Mamuru – que flui com suas águas escuras pelos estados do Pará e do Amazonas – lugar cujos primeiros habitantes foram o povo indígena Parintins, há uma região próxima à aldeia Tawakwéra na qual os Parintins cultuavam a entidade Wagatin. Ali, em um local de praias fluviais que rodeavam o rio e igarapés da região, conta-se que aconteciam cultos e oferendas ao deus em busca de paz e felicidade. Contudo, um jovem pajé chamado Wãkãtin nunca tinha seus desejos atendidos. O motivo? Porque ele já havia feito um pacto com o deus maligno Guariruba.
Com a entidade do mal, esse pajé aprendeu o feitiço de transformar as pessoas em mortos-vivos. Para se vingar dos outros pajés que zombavam dele por nunca ser atendido por Wagatin, transformou todos daquela região nos tais seres mortiços, chamados de Anpikakiãsa. Seus corpos ainda eram fortes, mas frios e pálidos como cadáveres, de olhos fundos e odor fétido como peixe podre. Alguns dos moradores correram em fuga, mas foram capturados pelas criaturas, presos em madeiros no meio do lugar que antes era sagrado. A partir daquele dia terrível, o local passou a ser amaldiçoado e chamado de Myrakãwéra.
O deus Guariruba também povoou aquela terra tenebrosa com milhares de formigas-gigantes, pois ele mesmo tinha cara de formiga. As Kaxitewa, com aspecto de tucandeiras do tamanho de escorpiões*, traziam grandes presas e eram sedentas por carne humana. Viviam em cinco grandes formigueiros, montes de areia do tamanho de arbustos, ao redor do centro cerimonial.
Myrakãwéra se tornou o cenário de sacrifícios ao deus Guariruba e, para manter os mortos-vivos em existência, inocentes continuavam sendo sacrificados. Os Anpikakiãsa prendiam as vítimas nas estacas, e, ao som das batidas de pés e tambores, as formigas-gigantes saíam em massa para devorar a carne, deixando apenas os esqueletos. Dizem que metade do povo Parintins sumiu assim. Já a outra metade, em guerras contra os brancos e outros povos indígenas.
Os sinais de perigo até o local são evidentes. Após uma ribanceira, estacas cortadas e amarradas em forma de X, outras com pontas apontadas e pintadas com tintura de jenipapo, além de estacas atadas umas às outras com um crânio de macaco no centro. Quem passava por esses sinais chegava a uma área delimitada por um riacho de águas frias, nascidas de um pequeno olho d’água em direção ao rio Mamuru. Um cenário macabro de chão desolado e um pouco de vegetação rasteira, com algumas enormes e assustadoras árvores cercadas por areia finíssima. Assim era a Myrakãwéra dos Parintins.
Da mesma forma, na cultura Maraguá, ela também existe, tendo o mesmo significado de Myrakãgwéra’kaxitewa, mas banida na nascente de um igarapé-açu do rio Abacaxis, outro relevante curso d’água da bacia amazônica. Seu povo utiliza como proteção o colar panãkiã, feito de olho de cobra e asas de pássaro tikuã, benzido pelos pajés contra os mortos-vivos, chamados por eles de Munungawéra.
Algumas dessas criaturas conseguem ultrapassar o local encantado e fazer vítimas, levando-as também para serem devoradas pelas formigas-gigantes. As Kaxitewa de lá têm aspecto de ferozes formigas-de-correição, acompanhadas do instinto mortal e do sofrimento dos sacrificados.
O grande autor Yaguarê Yamã foi quem percebeu essa presença mitológica de Myrakãwéra em ambas as culturas, ao dialogar com um amigo descendente aculturado do povo dos Parintins e com um pajé Maraguá, conforme explicado pelo próprio pesquisador e escritor, com o qual tive o prazer de conversar:
“Rapaz, tem um igarapé aqui chamado Igarapé-açu, é um igarapé muito bonito, aliás, muito grande. Ele vai bem longe, chega até as proximidades do rio Paraconi, do outro lado. É um lugar bonito, mas também misterioso, pois, segundo alguns malyli, que são o que vocês chamam de pajés ou curandeiros, é lá que vivem essas entidades, seja no início ou no fim do igarapé. No rio Abacaxis, conversei com um ancião bem antigo da ilha do rio Mamuru. Ele me contou uma história sobre um local onde encontrou cruzes e, junto a elas, caveiras. Isso me chamou muito a atenção. Algum tempo depois, viajei novamente pelo rio Abacaxis, reencontrei os Maraguá e perguntei mais sobre essa história de Myrakãwéra. Foi então que comecei a juntar as peças mitológicas da narrativa oral. No meu livro “Formigueiro de Myrakãwéra” (2013) utilizei este mito das culturas Maraguá e Parintins e sua essência para criar um enredo com personagens próprios”, disse Yaguarê Yamã, que também é uma liderança indígena e importante personalidade dos povos Maraguá e Sateré-Mawé. Além de suas obras voltadas às mitologias e lendas das etnias locais – como a excelente coleção “Mitos Indígenas do Brasil”, em coautoria com Ikanê Adean, que transmite a sabedoria ancestral dos povos originários –, também escreve ficções inspiradas por tais lendas. Ao todo, já publicou mais de quarenta livros, com reconhecimento internacional da Internationale Jugendbibliothek, biblioteca localizada em Munique, na Alemanha.
Essa narrativa mitológica, portanto, presente nas tradições das culturas indígenas Parintins e Maraguá, transmitida pelos pajés e registrada principalmente por Yaguarê Yamã, com o qual confirmei as informações, a meu ver, relata como a quebra de uma aliança espiritual deu origem a seres desprovidos de verdadeira vida e a um território marcado pelo desequilíbrio e pela predação coletiva, representados na maldita falange dos formigueiros de Myrakãwéra e seus sacrifícios macabros.
*Se considerarmos que as formigas-gigantes são descritas com o tamanho de um escorpião, e que a espécie Brotheas amazonicus é um dos maiores escorpiões nativos da Amazônia brasileira, podendo atingir até 10 cm, elas teriam por volta desse tamanho, algo realmente gigante para os padrões naturais. Para se ter ideia, uma formiga de 10 cm seria do tamanho aproximado de um aparelho de barbear descartável.
Caio Sales é ilustrador e escritor, com atuação nos meios cultural e publicitário. É pós-graduado em Marketing e Inovação pela PUC-Campinas e também em Sociologia, História e Filosofia pela PUC-RS. Atualmente, é pós-graduando em Gestão Cultural e Indústria Criativa na PUC-Rio. Tem também qualificação internacional em Marketing e Comunicação pela Academies Australasia, em Sydney, na Austrália. É membro da Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST) e da Associação de Escritores de Bragança Paulista (ASES). @caiosales_art