Conhecida como Cidade Poesia e Capital Nacional da linguiça artesanal, Bragança Paulista repousa entre sete colinas e se destaca no interior do estado de São Paulo por sua qualidade de vida e excelente clima. Nasci, cresci e vivo na cidade, com as minhas primeiras memórias vividas no bairro do Lavapés. Adorava ir à casa dos meus avós, Wilma e Raphael, onde eu brincava e deixava a imaginação fluir. Lembro do cheiro de café da minha avó na cozinha, do som da poltrona em que meu avô se ajeitava na sala, dos brinquedos e da bola de futebol pelo quintal.
Aqui, porém, quero destacar também um portão bem ao lado da casa deles, que dava para um corredorzinho estreito – o qual eu via como uma espécie de passagem mágica, quase secreta – que levava até o outro lado, conectado à casa da minha bisavó, carinhosamente chamada de “Vó que Benze”. É fácil relembrá-la, segurando um pedaço enrolado de papel de saco de pão e recitando palavras de cura bem baixinho, enquanto eu permanecia diante dela em crença e silêncio, à espera de ser melhorado de algum mal-estar.
Cresci cercado por histórias e gestos que alimentavam o imaginário, especialmente naquela infância mais analógica dos anos 1990, quando o tempo parecia se estender e permitir que a fantasia criasse raízes. Foi nesse terreno fértil em que as lendas começaram a mexer comigo.
Em Bragança Paulista, já ouvi histórias clássicas que circulam entre bairros e gerações: a Loira do Banheiro, o Homem do Saco, fantasmas escondidos em prédios antigos, o Lobisomem, ou mesmo boatos sobre uma Mula-sem-cabeça que teria rondado o bairro Vila Aparecida no fim dos anos 1960. Entre todas, porém, há uma que, sem qualquer traço de assombração, parece ter se enraizado com mais força no imaginário local e atravessado melhor o tempo: a lenda da Água da Biquinha.
Para contextualizar melhor a lenda, além dos relatos populares, incluindo os de amigos e familiares, e de visitar o Centro de Documentação da Câmara Municipal de Bragança Paulista, recorri a um texto publicado em 2013 pelo saudoso historiador bragantino José Roberto Vasconcellos, no qual menciona a água das biquinhas como um dos mais preciosos patrimônios da cidade e do seu folclore, bem como ao excelente livro Um pouco da nossa história (2011), do insigne escritor José Carlos Chiarion, que registrou importantes memórias do município ao longo de sua vida.
Conta-se que, há muito tempo, quando a água encanada era escassa, eram as fontes – chamadas “biquinhas” – a saciar a sede do povo bragantino. Por entre vielas e calçadas de pedra, a água brotava límpida e generosa, tornando-se uma conexão entre a cidade e seus habitantes. Antes do início do século XX, os carregadores de água peregrinavam pelas casas, fornecendo este líquido inestimável por duzentos réis. Já nos anos 1930, durante a escassez da época estival, formavam-se filas de pessoas com jarras, garrafas e outros recipientes para se abastecer e, por que não, colocar a conversa em dia. Afinal, naquele tempo, não havia os garrafões de águas oriundos do chamado Circuito das Águas entregues em domicílio.
Essas fontes fantásticas acompanharam o município por séculos, evoluindo em seus adornos e, embora muitas delas já tenham sido extintas, fosse no centro histórico, diante de seus imponentes casarões, ou quase escondidas nos cantos mais modestos, é inegável seu elo com a história da cidade.
A mais famosa, hoje já soterrada, era conhecida como “Chafariz Vermelho” e ficava na Travessa Riachuelo. Havia uma outra na parte baixa da rua da Liberdade, também conhecida por Travessa da Biquinha, uma no final da rua José Domingues e outra no final da avenida Antônio Pires Pimentel. Havia ainda uma à beira da Variante do Taboão, em frente ao Lago, cartão-postal da cidade, além de outra no início da avenida Euzébio Savaio, no Lavapés. Por fim, também no Lavapés, pela rua Monteiro Lobato, havia uma nos arredores da casa dos meus avós, abaixo do nível da rua, da qual minha mãe ainda se recorda de descer cinco degraus para acessar. Atualmente existem poucas biquinhas ativas, como na Travessa Silva Pinto, e vale ressaltar que, diante da profusão desse bem lendário, também há algumas não citadas.
Pela cidade, os melhores cafés se anunciavam como feitos com água da fonte, para deleite e valorização dos clientes. As águas dessas biquinhas, dizem as lendas, exercem um “feitiço gentil” sobre as pessoas, pois quem as bebe não vai mais embora de Bragança Paulista, ou, ao menos, são atraídas para sempre voltar; uma tradição, passada de boca em boca, feita de memória e encantamento.
Lendas em que a água exerce efeitos mágicos sobre as pessoas e suas vidas são bastante comuns em diversas culturas. No mito Guarani de Ituverá, a cachoeira mágica, suas águas proporcionariam a imortalidade. Ainda no Brasil, em Cruz Alta, terra do lendário Monstro da Lagoa do Cemitério, fala-se do Arroio da Panelinha, que traz mais uma vez a questão do retorno e da permanência. Já em outras tradições antigas, a ideia de uma água com propriedades extraordinárias surge sob outras formas, como a famigerada Fonte da Juventude. Na Mitologia Grega, por sua vez, há o rio Lete, do Submundo de Hades, que traz o completo esquecimento àqueles que entram em contato com suas águas. Ao me debruçar sobre o livro Psicologia e Alquimia, de Carl Jung, fundador da psicologia analítica, em edição de 2024, é mencionado que a água da vida pode ser obtida facilmente, mas é desprezada pelos tolos. Isso gera alguma reflexão.
Portanto, o elemento água exerce, por natureza, uma simbologia muito forte relacionada à vida e a seus caminhos transformadores. Assim como Bragança Paulista me traz essa conexão que vai além de ser meu local de nascimento, mas também um local de pertencimento; lar das melhores lembranças e vivências, como as que trouxe por aqui. Uma lendária Água da Biquinha molhando a garganta pode gerar essa ligação, mas são as memórias aqui criadas que, de fato, selam o encantamento.
*Dado o número de pessoas, famílias e formas de ajuda, eu poderia cometer o terrível deslize de não citar algum nome; afinal se trata, também, de memórias enraizadas antes mesmo da pesquisa. No entanto, agradeço muito a todos que, com sua atenção, gentilezas e relatos, contribuíram para a construção deste texto.
*Você conhece ou tem algum relato sobre outra lenda bragantina e gostaria de compartilhar? Envie para: contato.caiosalesart@gmail.com
Caio Sales é pesquisador, ilustrador e escritor, com atuação nos meios cultural e publicitário. É pós-graduado em Marketing e Inovação pela PUC-Campinas e também em Sociologia, História e Filosofia pela PUC-RS. Atualmente, é pós-graduando em Gestão Cultural e Indústria Criativa na PUC-Rio. Tem também qualificação internacional em Marketing e Comunicação pela Academies Australasia, em Sydney, na Austrália. É membro da Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror (ABERST) e da Associação de Escritores de Bragança Paulista (ASES). @caiosales_art