E chegamos mais uma vez ao fim do ano, a cidade está iluminada, as pessoas solidarizando e se preparando para os dias festivos. As famílias se reúnem, compram presentes, roupas e cozinham para comemorar. Porém muitas famílias não tem o que comemorar. Nesse último ano as estatísticas demonstraram um aumento considerável de violência contra as mulheres e essa violência ocorre dentro de suas casas onde deveriam ter todos esses preparos para dias felizes.
A cada dia um novo chamado de emergência, uma mulher acionou socorro após receber diversos socos e pontapés da pessoa que escolher para ser seu companheiro, com quem fez planos para construir seus sonhos e formar uma família. A mulher sangra, está descabelada e a roupa rasgada, mas a sua maior dor ainda é interna, onde ninguém vê, ninguém consegue alcançar seu sofrimento, aquela mistura de sentimentos, angustias e medo. A mulher ainda precisa encarar uma autoridade e relatar, por mais de uma vez, detalhadamente tudo que acabou de sofrer e sem se confundir, pois corre o risco de ser mal interpretada e não conseguir ajuda para que fique um pouco mais segura. Nessa busca de ajuda verifica-se que ela já havia registrado outras ocorrências anteriores e aí já muda o jeito de atendê-la, já prevendo que não vai levar adiante essa denúncia.
E o ano novo chegou mesmo assim, as pessoas comemoram e se divertem enquanto aquela mulher chora e sangra, e quando acabam os procedimentos e é deixada em sua casa, terá que lidar com o vazio, arrumar os estragos deixados, se levantar e seguir em frente. Nos dias seguintes aquele agressor feroz e impiedoso reaparecerá arrependido, cheio de promessas, trazendo flores e se vitimizando. E aquela mulher machucada e ferida na alma, ainda se sentirá culpada pelo seu sofrimento e inverterá os papéis, solidária com a dor e arrependimento que ele demonstra possivelmente o perdoará. Não porque ela gosta de apanhar, mas porque ela sonha com aquela família que idealizou, não quer ver todos felizes e comemorando e saber que está sozinha em dias tão alegres, afinal! Todos merecem uma segunda chance.
Cada retorno dessa mulher corta-se um pouco dos laços de amizade e familiares, primeiro porque apesar de resolver dar uma chance, ela se sente envergonhada e depois o seu agressor culpa essas amizades e os familiares por interferirem em suas vidas e ela quer que tudo isso dê certo dessa vez, ela vai passar por cima dessas cicatrizes e dores da alma e vai manter sua família.
E é ano novo! dias de festas e comemorações, dias alegres e festivos. Dessa vez não terá muitos amigos e nem irá na casa de familiares pois precisaria ficar explicando o olho roxo ou a boca cortada, vão passar em casa mesmo, juntos e em família para que se reconciliem. E mais uma vez o seu amado vai mudando o comportamento e o clima volta a ficar tenso, justo quando suas marcas já estavam desaparecendo. Ele sai para algum lugar e ela fica em casa apreensiva com o retorno dele, mas se sair será pior, ele vai culpa-la ainda mais.
Ele volta e volta pior do que antes, dessa vez ele diz que vai terminar o que começou, a acusa de uma traição que não existe e não há defesa, porque se ela diz que não, ele diz que está mentindo e se ela diz que sim, ele a matará com certeza. Ela apenas se recolhe ao chão encolhida em um canto na tentativa de se defender, mas hoje é ano novo, ele bebeu ainda mais do que estava acostumado e finalmente cumpre sua promessa. Tira-lhe a vida de maneira cruel e sofrida, junto com ela morre os sonhos, morre a esperança e aumenta mais um dígito nos índices de feminicídio.
A violência nunca é tão simples quanto parece para quem está fora do ciclo, a violência é cruel e não respeita feriados, datas comemorativas ou festivas. A vítima não precisa de juízes por onde vai, ela precisa de apoio, precisa de acolhimento, precisa ser ouvida e saber que alguém entende e respeita sua dor. A vítima precisa de ajuda profissional e de solidariedade, precisa de respeito e precisa de tempo para se curar. Que nesse final de ano tenhamos a compaixão de olhar a dor do outro sem julgar, que possamos apenas dar um abraço e dizer com toda sinceridade. VOCÊ NÃO ESTÁ SOZINHA!