Para falar desta lenda, vale uma introdução sobre acontecimentos de séculos e lugares distantes, quase perdidos no tempo.
Conta-se que, na antiga região da Antioquia, onde hoje se situa a Turquia, vivia um homem chamado Cipriano, que cresceu influenciado pelas ciências ocultas, demonstrando um grande domínio sobre elas. Versado em alquimia, astrologia e nas mais diversas modalidades da feitiçaria sombria. Seguiu em busca de fragmentos funestos e grandes mistérios da existência. Intensificando seus conhecimentos pagãos em uma jornada, ao visitar berços culturais e místicos mundo afora. Porém, quando conheceu uma mulher bastante religiosa chamada Justina, ficou espantado com o poder daquela fé, e rendeu-se ao cristianismo.
Posteriormente, ambos foram canonizados como São Cipriano e Santa Justina, pois no ano de 304 acabaram perseguidos e decapitados na Nicomédia, cruelmente condenados pelo imperador Diocleciano, que exaltava os antigos cultos romanos e repudiava a doutrina cristã.
Embora tenha sido santificado, o bruxo que morreu temente a Deus já havia deixado seu legado na magia. Seus estudos teriam sido reunidos em um grimório repleto de seções sobre conjurações, necromancia e outros saberes proibidos. O famoso Livro de São Cipriano.
Atualmente tal obra é contestada por muitos ocultistas, uma vez que a veracidade da sua versão original é cercada de causos e contradições. Pois, na realidade, São Cipriano teria queimado os manuscritos originais quando se converteu ao cristianismo, tornando praticamente impossível o surgimento deste compilado centenas de anos após sua morte. Entretanto, é inegável a notoriedade que o Livro de São Cipriano ganhou no mundo todo, onde, como uma pequena herança do influente Mediterrâneo para Portugal, foi consequentemente diluído na crendice popular do Brasil.
Dentre as invocações citadas no grimório, existe aquela que ganhou uma provável derivação por todo o nosso país, auxiliada por retoques da superstição brasileira, principalmente nas regiões interioranas, em especial de Bahia e Minas Gerais. Um pacto para trazer muita riqueza, mas cercado de riscos: o pacto demoníaco do Famaliá (ou Familiá, Familiar); conhecido também como Cramulhão (ou Cramunhão), ou simplesmente Diabinho da Garrafa.
Com a ínfima altura de um palmo, o Famaliá é uma espécie de diabinho doméstico, que fica confinado dentro de um recipiente – comumente uma garrafa – e é criado para ofertar prosperidade ao seu dono. Atendendo aos mais gananciosos desejos, como se fosse um gênio da lâmpada, mas oriundo da magia das trevas. Inclusive, dizem as más línguas pelos campos rurais, que muitos coronéis no passado, e alguns donos de terras no presente, teriam ganhado suas fortunas às custas de tal entidade poderosa.
Agora, falando sobre a receita para se ter um Famaliá, saiba que ela pode variar de acordo com cada região. No entanto, acredita-se que ele nasce de uma galinha virgem e de cor preta, ou então de um galo, fecundados pelo próprio Diabo; gerando um pequenino ovo, que deve ser procurado no período da Quaresma, sendo o primeiro botado naquele dia. Feito isso, logo na sexta-feira, seu portador precisa ir a uma encruzilhada e aguardar até meia-noite. Chegada a hora, deve então retornar para a casa, caminhando com o ovo debaixo do braço esquerdo. Depois, tem de deitar-se na cama, com ele ainda na axila, mantendo-se assim por quarenta longos dias, geralmente acompanhados de muita febre. Desta forma, o tão esperado diabinho é finalmente chocado. Dotado de um par de chifres e cauda pontiagudos. Com o corpo todo escuro como o breu ou todo vermelho como o sangue (em alguns casos, apresentando uma pele escamosa similar a de um réptil). Tendo de ser trancado imediatamente na famigerada garrafa.
Assim que nasce, o contrato é firmado, materializado como em fibras flamejantes diante de uma vida maculada.
Não há chances de recuar.
Sua presença sobrenatural por nossas terras também está registrada nos arquivos das cortes da Inquisição no Brasil, intensificada no século 18. No qual, alguns ditos profanos, precisaram se defender das acusações de usufruírem do poder da criaturinha infernal. Naquele período, uma rede de representantes credenciados pela Igreja recebiam as denúncias de heresia – muitas das vezes banais e pifiamente baseadas em “ouvi dizer” – e, após avaliarem os casos, remetiam as sentenças do Brasil diretamente para Lisboa, em Portugal.
De servo de feiticeiros na Europa Meridional a amuleto obscuro no Brasil, uma coisa é certa: não pense que o ganho é de todo fácil.
O Famaliá cobrará toda a fortuna que ajudou a conquistar até o fim da vida, levando a alma de seu dono para as profundezas do Inferno.
Diretamente ao seu verdadeiro soberano.
Caio Sales é ilustrador e escritor, autor da série O Imaginário do Mundo. Pós-Graduado em Marketing pela PUC-Campinas, também é criador do blog My Creature Now, sobre criaturas mitológicas e lendas urbanas. @caiosales_art | Acesse: www.mycreaturenow.com