Para onde vai a América do Sul? Por que os ciclos políticos se revezam, gerando solavancos para a direita e para a esquerda? Como se comporta o arco ideológico nesta terceira década do século XXI? O que explica o aparecimento de um anarcocapitalista, como Xavier Milei, no planeta maltratado por duas guerras? Afinal, quais são os traços mais visíveis nos horizontes da política? O mundo, é a impressão, parece descer a ladeira da democracia.
As perguntas, como se pode perceber, apontam para múltiplas variáveis, algumas das quais merecem reflexão mais demorada. Partamos do polêmico ponto de vista do professor Samuel P. Huntington, de Harvard. Que, em seus trabalhos, defende a tese de que os conflitos com origem em ideologia estão dando lugar aos conflitos civilizacionais, com foco nas tradições, culturas e religião. A guerra entre Hamas e Israel exibe um pano de fundo religioso.
Uma segunda abordagem é sobre a crise crônica que corrói os sistemas democráticos e cuja origem aponta para os seguintes vetores: o declínio das ideologias, o declínio dos partidos, o arrefecimento das bases eleitorais, o declínio dos parlamentos, o aparecimento de novos polos de poder. O pensador principal dessa corrente é o sociólogo francês, Roger-Gérard Schwartzenberg, para quem a era da desideologização propicia a emergência da tríade: a burocracia, a política e os círculos de negócios.
Se juntarmos esse acervo ao pensamento do sociólogo italiano, Norberto Bobbio, que discorreu sobre as promessas não cumpridas pela democracia – entre elas, a educação para a cidadania, o combate às oligarquias e a eliminação do poder invisível – teremos um vasto arsenal para explicar mirabolantes fenômenos da contemporaneidade.
No caso da América do Sul, o rodízio que se processa no arco ideológico, entre os polos da direita e esquerda, leva mais em conta a saturação do eleitor com a velha ordem política. Aliás, tal cansaço parece ocorrer aqui e alhures, dando conta da indignação do votante para com as promessas descumpridas pelos agentes públicos. O samba do dois pra lá, dois pra cá tem tocado bem em nossa região. A esquerda tem sete governos – Venezuela, Brasil, Chile, Bolívia, Colômbia, Guiana e Suriname – e a direita soma cinco – Argentina, Equador, Paraguai, Uruguai e Peru. A equação representa menos ideologia e mais a vontade do eleitor de mandar tudo às favas.
Vejam o caso de Javier Milei. Um excêntrico na estética e nas ideias. Casaco de couro, estilo roqueiro. Cabelos revoltos. Uma boca de “leão” para mastigar os restos do inimigo, o Estado. Leva para os comícios uma motoserra. O anarcocapitalista não é bobo. Captou o sentimento de revolta de jovens, adultos, classe média, margens sociais, que viram seus bolsos minguarem dos desvalorizados pesos. A população argentina tem 40% abaixo da linha de pobreza.
Professor de microeconomia na Universidade de Buenos Aires, Milei foi buscar uma tintura conceitual nas ideias de Murray Rothbard, economista heterodoxo norte-americano, integrante da Escola Austríaca, que ajudou a definir o conceito moderno de libertarianismo. Rothbard fundou e foi o principal teórico da vertente baseada no livre mercado, denominada “anarcocapitalismo”. Essa ideologia prega a soberania do indivíduo frente ao Estado, por meio da propriedade privada e do livre mercado. Os libertários, em geral, rejeitam quaisquer formas de autoritarismo seja na organização da sociedade seja na vida individual.
Da arquitetura conceitual, que junta Huntington, Scwartzenberg, Bobbio e os trombeteiros do anarcocapitalismo, pode-se enxergar traços comuns: as bases eleitorais estão dando as costas à velha ordem, as tradições vão tomando lugar das ideologias, as viradas de mesa recebem apoio das massas, o mundo vive a era do pragmatismo na política. Nações democráticas, como a França e o Reino Unido, dão adeus ao passado. Quem diria que um descendente de indianos, Rishi Sunak, viria ser primeiro-ministro dos antigos colonizadores, os ingleses.
O que pode se extrair dessa moldura para o Brasil? Primeiro, que os governos não devem apostar em ideologia para consolidar seu poder; segundo, o país escancara imenso espaço para as organizações intermediárias, que formam novos polos de poder; terceiro, as massas tendem a dar uma volta de 180º na direção eleitoral, de um pleito para outro, “comprando” a roupagem de protagonistas que encarnam uma “virada de mesa” ou se assemelhem a out-siders; quarto, o país clama por novas lideranças, enquanto, de maneira lenta, porém gradual, puxa o caixão da velha ordem; quinto, as encruzilhadas na trajetória de uma democracia claudicante deixarão os atores políticos muito confusos.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político